Do formalismo à presença: Yoga como ritual
- Studio Yogares
- 29 de set.
- 6 min de leitura
Salas decoradas com imagens sagradas, incensos, entoação de mantras são elementos comuns em muitas aulas de yoga ao redor do mundo.
Mesmo tendo sido rapidamente conquistada pelo yoga, admito que nunca me senti à vontade com essa "estética" das aulas. Eu as sentia como algo distante e descolado da nossa realidade contemporânea e ocidental, ou como um aspecto religioso do yoga que não precisa ser necessariamente absorvido nas práticas. Por isso, o estúdio Yogares tem um visual neutro, adornado apenas pelo jardim ao redor. Também sempre evitei a entoação de mantras no início das aulas... até começar a ler "O desaparecimento dos rituais - uma topologia do presente". O autor Byung-Chul Han abre o livro com a seguinte mensagem:
"Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma comunicação sem comunidade".
Ao longo do livro, o autor segue discutindo sobre como nossas sociedades atuais - marcadas pela velocidade de dados e informações, coagidas à produção, performance, desempenho, autenticidade - tem cada vez mais repudiado rituais e formalidades simbólicas que não tenham utilidade prática: "'Ritual' se tornou uma palavra escabrosa, uma expressão para o conformismo vazio; somos testemunhas de uma revolta geral contra todo tipo de formalismo, contra a 'forma' em geral".
Enquanto lia as palavras de Byung-Chul Han, fui sentindo as bochechas corarem, pois me identifiquei rapidamente com essa tendência em, por um lado, vangloriar os estados internos, sentimentos, autenticidade, e, por outro, rejeitar todo e qualquer formalismo (aparentemente) vazio e sem sentido.
Ao longo de 10 capítulos, Han delineia as "patologias do presente", refletindo sobre como o repúdio à forma, formalismos e formalidades tem brutalizado as sociedades atuais, nos fazendo mergulhar em uma onda de narcisismo coletivo, em que as individualidades se sobrepõem ao espírito de comunidade. Cada vez mais, admitimos apenas aquilo que faça sentido para nós, aquilo que nos agrade ou com que concordamos. Não é à toa o crescimento galopante de intolerância e extremismos no mundo todo, cada um achando que suas opiniões são verdades absolutas, querendo impor suas vontades e visão de mundo sobre os outros. Para Han, o repúdio às formas e o desaparecimento dos rituais em nossas sociedades modernas tem levado à erosão da comunidade:
"O processo de interiorização narcísico desenvolve uma hostilidade à forma. Formas objetivas são condenadas em prol de estados subjetivos. Rituais não se prestam à interioridade narcísica. (...) Quem se dedica a eles deve renunciar a si mesmo. Rituais produzem uma distância de si, uma transcendência de si".
Prática de Yoga: ritual ou exercício?
Swami Sivananda Sarawasti de Rishikesh descreve yoga como um meio de "integração e harmonia entre pensamento, sentimento e ação, ou integração entre cabeça, coração e mãos. Em busca dessa integração, a maior parte das técnicas do yoga ocupa-se com a forma, como por exemplo, os asanas, que exploram diferentes posturas corporais, ou os mudras, descritos como gestos estéticos que combinam movimentos físicos sutis e, assim, alteram o humor, a atitude e a percepção, aprofundando a consciência e a concentração (Swami Satyananda Saraswati). Partindo dessas premissas, yoga é definitivamente uma prática ritual.
Porém, em sociedades coagidas à performance e ao desempenho, é muito fácil nos perdermos e transformarmos os asanas em meros exercícios de alongamento e flexibilidade, "preocupando-nos exclusivamente com o físico e o desenvolvimento das potencialidades que nele existem, até conseguir resultados extraordinários de resistência e 'malabarismo fisiológico'. Seus adeptos convertem-se em idólatras do corpo e a perfeição atingida os aprisiona ao invés de libertá-los", já dizia Antonio Blay.
Enquanto escrevo esse texto, vou me dando conta do quanto a prática de yoga em sociedades que repudiam a forma pode ser contraditória: todo o simbolismo das formas rituais reduz-se a meros contorcionismos que apenas alimentam o ego em fotos instagramáveis. Quem de nós nunca ficou espiando e comparando-se com os outros em uma aula de yoga? Mais comum ainda são pessoas que nem cogitam praticar yoga, pois já assumem que não serão capazes de fazer aqueles "exercícios" tão complicados de alongamentos e torções...
Sendo uma prática ritual, a prática de yoga, apesar de individual, pressupõe uma comunidade, impossibilitando qualquer espaço para comparações, ou sentimentos de vergonha e inadequação. Segundo Byung-Chul Han, "rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, de um ritmo comum".
Porém, quando perdemos o aspecto ritual do yoga e o praticamos apenas como mais um tipo de exercício, perdemos a ressonância em comunidade, reduzindo o yoga não apenas a uma prática individual, mas, sobretudo, individualista.
Resgate dos rituais, resgate da comunidade
O mantra Om Sahana Vavatu é bastante conhecido por praticantes de yoga. Costuma ser entoado em muitos estúdios de yoga no início da prática. Pensando no yoga como prática ritual que cria uma "comunidade de ressonância", abrir as aulas com esse mantra é bastante significativo. Em tradução livre:
Om Sahana Vavatu
"Que sejamos protegidos
Saha Nau Bhunaktu
Que sejamos nutridos
Saha Veeryam Karavaa Vahai
Que trabalhemos juntos com grande vigor
Tejasvi Naava dheetamastu
Que nosso estudo tenha muita luz
Maa Vidvisha Vahai
Que não haja conflitos entre nós
Om Shanti Shanti Shanti
Om Paz Paz Paz"
Embora a mensagem do mantra seja linda, eu costumava ter dúvidas em relação à entoação de mantras no início das aulas, pois temia que isso se tornasse um formalismo sem sentido e mecanizado ao longo do tempo. Além disso, preciso admitir que eu era do "time" de pessoas que defendia a importância da autenticidade a todo custo. "Fazer algo mecânico só porque é costume ou tradição, ou porque todo mundo faz? Não, não faz sentido. E se não tem sentido, não tem por que fazer", era o que eu costumava pensar.
Byung-Chul Han nos alerta para o perigo dessa tendência em nossos tempos: "Vivemos hoje em uma cultura do significado que descarta os significantes, a forma como algo exterior. Essa cultura é inimiga do desfrute e da forma". Segundo Han, "se o signo, o significante for absorvido completamente pelo significado, pela significação, então a linguagem perde sua mágica e seu brilho. Vira informacional".
Ora, uma linguagem puramente informacional, a serviço apenas daquilo que comunica, é uma linguagem cooptada pelo capital, pela produção e pela performance. No capitalismo, não se admite nada que não tenha alguma utilidade, que não dê algum resultado. No capitalismo, até mesmo o ócio ganha alguma função: só admitimos o ócio se ele for associado à ideia de descanso e resturação, por exemplo. Do contrário, o ócio é visto como preguiça, pecado mortal na lógica capitalista e neoliberal (hoje me dou conta do quanto, sem perceber, eu havia caído nessa armadilha capitalista de não admitir nada "inútil", nada que não fizesse sentido).

Diferentemente, o significante sem significado, a forma sem conteúdo, carrega um quê de mistério: "as fórmulas mágicas não transportam também nenhum significado. Elas são, por assim dizer, signos vazios. Por isso, parecem mágicas como as portas que levam ao vazio". Para Han, a funcionalização e informacionalização crescentes da linguagem tem feito com que ela fique desencantada. "A informação pura não emana nenhuma magia. Não seduz".
Assim, ainda que com o tempo nos esqueçamos da "mensagem" do mantra; ainda que, com o tempo, o mantra se torne um formalismo vazio e sem sentido, entoá-lo no início das aulas traz uma atmosfera especial, nos lembrando de que não apenas o mantra é um ritual, mas toda a prática. No fim das contas, praticar yoga como ritual - e não como apenas um tipo diferente de exercício -acaba sendo um ato de resistência a toda essa loucura neoliberal, narcísica e individualista dos nossos tempos.
Mais do que isso, o mantra, enquanto forma pura, dá ao tempo um container, uma estrutura, lembrando-nos de que não precisamos nos apressar para atingir este ou aquele objetivo, como estamos tão condicionados a fazer dentro da lógica capitalista. Enquanto forma pura, os mantras não estão a serviço de nenhum "conteúdo", de nenhum objetivo ou meta. Eles vibram e ressoam no ar, sem pressa, apenas sendo o que são.
Quanto a nós, desfrutar do yoga enquanto ritual pode ser uma excelente oportunidade para desapegar da correria e listas de tarefas e apenas estar. Apenas desfrutar. Apenas nos permitir viver o momento, com tudo o que ele tem a nos oferecer.
Se sozinhos, tal mudança de paradigma já seria potente e revolucionária, imagina quando praticarmos juntos? Imagina resgatar o valor das formas e rituais simbólicos nesse mundo globalizado e neoliberal, que nos coage o tempo todo à produção, à performance, comparações e desempenho, nos levando a quadros cada vez mais frequentes de depressão, ansiedade, burnout, intolerância e polarização? Imagina como será quando nos permitirmos renunciar a nós mesmos - aos nossos gostos e opiniões pessoais - para nos reunirmos em torno de rituais simbólicos (ainda que sejam formalismos sem sentido), emanando um espírito de união, de comunhão e de comunidade? Vai ser lindo, vai ser revolulcionário...
Pensando bem, já está sendo!
Seguimos juntos?
Namastê!
REFERENCES:
Blay, A. "Fundamento e técnica do Hatha Yoga", Edições Loyola, 1971.
Han, B. "O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente", Ed. Vozes, 2021.
Saraswati, S. S. "Asana Pranayama Mudra Bandha", Yoga Publications Trust, 2008.

Que texto lindo e profundo, que faz de certo pensar. Embora os rituais sejam muitas vezes visto como "perigosos" e sinónimo de "culto", é verdade que continuam a ser importantes para que nós nos sentirmos parte de "algo", "algo" maior que nós mas que não nos esmaga mas sim transforma. A prática do yoga e os "pequenos rituais" das nossas sessões fazem-me sentir parte de um grupo, de uma comunidade muito especial. Aqui fazemos parte e somos acolhidos. Sem medo de julgamentos, seguimos ao nosso ritmo... individuais, que fazem parte de um círculo um pouco maior, mas mesmo assim um círculo de acolhe. Obrigada por isso. E que continues sempre a estudar, a explorar, a crescer.